A Ditadura da Leveza - O Mundo Hoje [por Gilles Lipovetsky]
- RockandRolla
- 21 de jan. de 2021
- 2 min de leitura
Atualizado: 1 de mar. de 2021

Está em acção uma dinâmica dotada de poder múltiplo, que constrói um novo tipo de civilização: a civilização do ligeiro. Estamos apenas nos primeiros passas, mas todos os dias conquista novos territórios, realiza novas proezas, suscita novas esperanças e, ao mesmo tempo, novas angústias. Da cloud computing às biotecnologias, dos nano-objectos aos aparelhos de alta tecnologia, do culto da magreza à alimentação light, dos desportos com prancha às técnicas de relaxamento, das tendências da moda às indústrias do entretenimento, é através de uma multidão de dispositivos heteróclitos e multiformes que evolui a revolução hipermoderna do ligeiro.
O leve, aquilo que era mais insignificante e mais fútil, tornou-se a maior força de transformação do mundo. Na era da hipermodernidade, não é o poder sobre o pesado que muda a face do mundo, mas sim o poder sobre o ultra-leve. Na época que se inicia, o domínio técnico do infinitamente pequeno é aquilo que abre infinitamente o horizonte dos possíveis, tornando real o que, até então, era considerado impossível.
Note-se que esta dinâmica está longe de estar igualmente desenvolvida em todas as esferas. As grandes infraestruturas, o gigantismo e os equipamentos faraónicos não estão em vias de extinção. Muito pelo contrário, até os bancos se tornaram too big to fail. No entanto, o princípio da leveza não deixa de progredir a uma velocidade estonteante e de chegar a cada vez mais sectores: energia, aeronáutica, telecomunicações, automóveis, banca, cirurgia, mas também jogos, música, fotografia, cinema, arquitectura, design.
De resto, civilização do ligeiro significa tudo menos viver de forma leve. Embora o peso das normas sociais se tenha aligeirado, a vida parece mais pesada. Desemprego, precariedade, instabilidade dos casais, emprego de tempo sobrecarregado, riscos sanitários – perguntamo-nos se isto não alimentará a sensação de gravidade da vida. Por toda a parte se multiplicam os sinais de desamparo, as novas expressões do «mal-estar na civilização». Os dispositivos leves podem abundar, mas os mecanismos do mercado e a dinâmica de individualização não deixam de continuar a produzir inúmeros danos.
Ironia hipermoderna: actualmente, é a leveza que alimenta o espírito de gravidade. Isto porque a leveza se acompanha de normas exigentes com efeitos esgotastes e, por vezes, deprimentes: ter um corpo esbelto implica normalmente a renúncia à tranquilidade do carpe diem, uma existência nos antípodas de uma vida despreocupada. O próprio consumo impõe-se, para grandes frações da população, como fonte de preocupações quotidianas e de práticas que se assemelham a um «trabalho» feito de pesquisas e de comparações pacientes e séries.
E é mais pesado não ser feliz numa sociedade que celebra o ideal de leveza hedonista do que nas sociedades que ensinavam, como no passado, a resignação na Terra tendo em vista a salvação no Além. O nosso mundo deu origem a desejos de felicidade impossíveis de satisfazer; daí a multiplicação das desilusões relativas a uma vida que nunca é suficientemente leve, divertida ou móvel. O sentimento gracioso da existência recua enquanto triunfam a cultura do divertimento e as disposições materiais do ultraleve. A época foi dominada por um novo «espírito de gravidade».
[Excertos retirados da obra "Da Leveza", de Gilles Lipovetsky]
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