Francis Fukuyama - A Guerra de Putin à Ordem Liberal
- RockandRolla
- 22 de mar. de 2022
- 10 min de leitura

A terrível invasão russa da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, tem sido vista como um ponto de viragem crítico na história mundial. Muitos disseram que marca definitivamente o fim da era pós-guerra fria, um retrocesso da “Europa inteira e livre” que pensámos ter surgido após 1991, ou mesmo o fim do fim da História.
Ivan Krastev, um astuto observador dos acontecimentos a leste do Elba, afirmou recentemente que no “The New York Times” que “estamos todos a viver no mundo de Vladimir Putin agora”, um mundo onde a força bruta atropela o Estado de direitos e os direitos democráticos.
Não há dúvida de que o ataque russo tem implicações que ultrapassam as fronteiras da Ucrânia. Putin deixou claro que pretende reconstruir o máximo possível da antiga União Soviética, incorporando a Ucrânia na Rússia e criando uma esfera de influência que se estende por todos os estados da Europa Oriental que aderiram à NATO a partir da década de 90.
Embora seja ainda muito cedo para saber como esta guerra irá evoluir, é já claro que Putin não será capaz de atingir os objetivos máximos. Esperava uma vitória rápida e fácil e que os ucranianos o tratassem como um libertador. Em vez disso, remexeu num ninho de vespas zangadas, com ucranianos de todas as fações a mostrarem um grau de tenacidade e de unidade nacional sem precedentes. Mesmo que Putin tome Kiev e deponha o Presidente Volodymyr Zelensky, não conseguirá, a longo prazo, subjugar uma nação furiosa de mais de 40 milhões com força militar. E enfrentará um mundo democrático e uma aliança da NATO unificada e mobilizada como nunca antes visto, que impôs sanções dispendiosas à economia da Rússia.
Ao mesmo tempo, a atual crise demonstrou que não podemos tomar por garantida a atual ordem mundial liberal. É algo para o qual temos de lutar constantemente e que desaparecerá no momento em que baixamos a nossa guarda.
Os problemas enfrentados pelas sociedades liberais de hoje não começaram e não terminam com Putin, e enfrentaremos desafios muito sérios, mesmo que ele seja travado na Ucrânia. O liberalismo tem estado sob ataque há algum tempo, tanto por parte da direita como da esquerda. A Freedom House, no seu inquérito sobre a “Liberdade no mundo” para 2022, nota que a liberdade global caiu no total durante 16 anos consecutivos. Caiu não apenas devido à ascensão de poderes autoritários como a Rússia e a China, mas também devido à mudança para o populismo, o antiliberalismo e o nacionalismo no seio de democracias liberais de longa data, como os Estados Unidos e a Índia.
O QUE É O LIBERALISMO?
O liberalismo é uma doutrina, enunciada pela primeira vez no século XVII, que procura controlar a violência diminuindo as expectativas da política. Reconhece que as pessoas não concordarão com as coisas mais importantes – como a religião que deve ser seguida –, mas que precisam de tolerar que os seus concidadãos tenham opiniões diferentes das suas.
Faz isto respeitando a igualdade de direitos e dignidade dos indivíduos, através de um Estado de direito e de um Governo constitucional que verifica e equilibra os poderes dos Estados modernos. Entre esses direitos estão os direitos à propriedade privada e o direito a efetuar transações livremente, razão pela qual o liberalismo clássico estava tipicamente associado à ciência natural moderna e à visão de que a ciência poderia ajudar-nos a entender e a manipular o mundo externo em nosso próprio benefício.
Muitos desses fundamentos estão agora sob ataque. Os conservadores populistas ressentem intensamente a cultura aberta e diversificada que prospera nas sociedades liberais e anseiam por uma época em que todos professavam a mesma religião e partilhavam a mesma etnia. A índia liberal de Gandhi e Nehru está a transformar-se num estado hindu intolerante sob o Governo de Narenda Modi, primeiro-ministro indiano; entretanto, nos Estados Unidos, o nacionalismo branco é abertamente celebrado em grupos dentro do Partido Republicano. Os populistas irritam-se com as restrições impostas pela lei e pelas constituições: Donald Trump recusou-se a aceitar o veredicto das eleições de 2020 e uma multidão violenta tentou alterá-lo diretamente, atacando o Capitólio. Os republicanos, em vez de condenarem esta tentativa de agarrar o poder, alinharam em grande parte com a grande mentira de Trump.
Os valores liberais da tolerância e da liberdade de expressão também foram desafiados pela esquerda. Muitos progressistas sentem que a política liberal com o seu debate e construção de consensos, é demasiado lenta e falhou gravemente em resolver as desigualdades económicas e raciais que surgiram como resultado da globalização. Muitos progressistas mostraram-se dispostos a limitar a liberdade de expressão e o devido processo em nome da justiça social.
Tanto a direita como a esquerda antiliberais juntam-se na sua desconfiança relativamente à ciência e à experiência. À esquerda, uma linha de pensamento estende-se desde o estruturalismo do século XX, através do pós-modernismo, até à teoria crítica contemporânea que questiona a autoridade da ciência. O filósofo francês Michel Foucault argumentou que as elites obscuras usavam a linguagem da ciência para esconder o domínio de grupos marginalizados, como os homossexuais, os doentes mentais ou os prisioneiros.
Esta mesma desconfiança relativamente à objetividade da ciência passou agora para a extrema-direita, onde a identidade conservadora gira cada vez mais em torno do ceticismo em relação às vacinas, às autoridades de saúde pública e à experiência de um modo mais geral.
Entretanto, a tecnologia estava a ajudar a reduzir a autoridade da ciência. A internet foi inicialmente celebrada pela sua capacidade de contornar guardiões hierárquicos, como governos, editores e meios de comunicação tradicionais. Mas este novo mundo acabou por ter uma grande desvantagem, uma vez que intervenientes malévolos da Rússia aos conspiradores do QAnon utilizaram esta nova liberdade para espalhar a desinformação e o discurso de ódio. Estas tendências foram incentivadas, por sua vez, pelo interesse próprio das plataformas grandes da internet que prosperaram não em informação de confiança, mas na sua virilidade.
COMO O LIBERALISMO EVOLUIU PARA ALGO ANTILIBERAL
Como é que chagámos a este ponto? No meio século que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, houve um consenso amplo e crescente em torno do liberalismo e de uma ordem mundial liberal.
O crescimento económico descolou e a pobreza diminuiu à medida que os países beneficiavam de uma economia global aberta. Isto inclui a China, cuja reemergência moderna foi possibilitada pela sua vontade de jogar pelas regras liberais tanto interna e externamente. Mas o liberalismo clássico foi reinterpretado ao longo dos anos e evolui para tendências que, no fim, se revelaram autoincapacitantes. À direita, o liberalismo económico dos primeiros anos do pós-guerra transformou-se, durante os anos 80 e 90, no que por vezes é designado “neoliberalismo”. Os liberais entendem a importância dos mercados livres – mas sob a influência de economistas como Milton Friedman e a chamada “escola de Chicago”, os mercados eram adorados e o Estado era cada vez mais demonizado como inimigo do crescimento económico e das liberdades individuais.
As democracias avançadas, sob o feitiço das ideias neoliberais, começaram a afastar o Estado e a regulamentação, em matéria de segurança social e aconselharam os países em desenvolvimento a fazer o mesmo no âmbito do “Consenso de Washington”. Os cortes na despesa social e em sectores estatais removeram os tampões que protegiam os indivíduos dos caprichos do mercado, levando a grandes aumentos nas desigualdades nas últimas duas gerações. Embora algumas destas reduções da despesa tenham sido justificadas, foram levadas a extremos e levaram, por exemplo, à desregulamentação dos mercados financeiros dos EUA nas décadas de 80 e 90 que os desestabilizaram e provocaram crises financeiras, como o colapso do subprime em 2008. O culto da eficiência levou à terceirização de empregos e à destruição de comunidades da classe trabalhadora em países ricos, que serviu de base para a ascensão do populismo na década de 2010.
A direita valorizou a liberdade económica e empurrou-a para extremos insustentáveis. A esquerda, pelo contrário, concentrou-se na escolha individual e na autonomia, mesmo à custa das normas sociais e da comunidade humana. Esta visão minou a autoridade de muitas culturas tradicionais e instituições religiosas. Ao mesmo tempo, os teóricos críticos começaram a argumentar que o próprio liberalismo era uma ideologia que mascarava o interesse próprio dos seus defensores, se estes fossem homens, europeus, brancos ou heterossexuais.
Tanto à direita como à esquerda, as ideias liberais fundamentais foram empurradas para extremos que, em seguida, corroeram o valor percebido do próprio liberalismo. A liberdade económica evoluiu para uma ideologia antiestatal e a autonomia pessoal evoluiu para uma “desperta” [woke, no original] visão progressiva do mundo que celebrava a diversidade numa cultura partilhada. Estas mudanças produziram então a sua própria reação negativa, onde a esquerda culpou o próprio capitalismo pela crescente desigualdade, e a direita viu o liberalismo como um ataque a todos os valores tradicionais.
O CONTEXTO GLOBAL
O liberalismo é mais valorizado quando as pessoas vivenciam a vida num mundo não liberal. A própria doutrina surgiu na Europa após os 150 anos de guerra religiosa constante que se seguiram à Reforma Protestante. Renasceu na sequência das destrutivas guerras nacionalistas da Europa no início do século XX. Uma ordem liberal foi institucionalizada sob a forma de União Europeia e a ordem global mais ampla de comércio aberto e investimento criada pelo poder dos Estados Unidos. Recebeu um grande impulso em 1989 e 1991 quando o comunismo entrou em colapso e as populações que viviam sob o seu domínio foram livres de moldar o seu próprio futuro.
Contudo, mais de uma geração passou agora desde a queda do Muro de Berlim e as virtudes de viver num mundo liberal foram dadas como certas por muitos. A memória das guerras destrutivas e da ditadura totalitária desvaneceu-se, especialmente para os jovens na Europa e na América do Norte.
Neste novo mundo, a UE, que conseguiu espetacularmente impedir a guerra europeia, era agora vista por muitos à direita como tirânica, enquanto os conservadores argumentaram que as normas do Governo para todos usarem máscaras e serem vacinados contra a covid-19 eram comparáveis à forma como Hitler tratou os judeus. Isto é algo que só poderia acontecer numa sociedade segura e complacente que não tivesse tido experiência de ditadura real.
Além disso, o liberalismo pode ser pouco inspirador para muitas pessoas. Uma doutrina que deliberadamente diminui as expectativas da política e que impõe a tolerância de diversas opiniões muitas vezes não satisfaz aqueles que querem uma comunidade forte baseada em visões religiosas partilhadas, etnia comum ou fortes tradições culturais.
Neste vazio, entraram regimes autoritários não liberais. Os da Rússia, China, Síria, Venezuela, Irão e Nicarágua têm pouco em comum, além do facto de não gostarem da democracia liberal e quererem manter o seu próprio poder autoritário. Criaram uma rede de apoio mútuo que permitiu, por exemplo, a sobrevivência do regime desprezível de Nicolás Maduro em Caracas, apesar de ter levado mais de um quinto da população da Venezuela ao exílio.
No centro desta rede está a Rússia de Putin, que forneceu armas, conselheiros, militares e serviços de informação a praticamente qualquer regime, independentemente do quão terrível fosse para o seu próprio povo, que se opõe aos Estados Unidos ou à UE. Esta rede estende-se ao coração das próprias democracias liberais. Os populistas de direita manifestam admiração por Putin, começando pelo antigo Presidente americano, Trump, que disse que Putin era um “génio” e “muito astuto” após a sua invasão da Ucrânia.
Os populistas incluindo Marine Le Pen e Eric Zemmour, em França, Matteo Salvini, em Itália, Jair Bolsonaro, no Brasil, os líderes da AfD, na Alemanha, e Viktor Orbán, na Hungria, mostraram solidariedade por Putin, um líder “forte” que age decisivamente para defender os valores tradicionais sem considerar coisas mesquinhas como leis e constituições.
O mundo liberal trouxe enormes aumentos na igualdade de género e tolerância para os gays e lésbicas nas últimas duas gerações, o que provocou alguns no direito de adorar a força masculina e a agressão como virtudes em si mesmas.
O ESPÍRITO DE 1989 NÃO ESTÁ MORTO
É por isso que a atual guerra na Ucrânia é importante para todos nós. A agressão e o bombardeamento não provocado por parte da Rússia às cidades pacíficas Kiev e Kharkiv na Ucrânia lembrou às pessoas da forma mais vívida possível quais são as consequências de uma ditadura não liberal.
A Rússia de Putin é claramente vista não como um Estado com queixas legítimas sobre a expansão da NATO, mas como um país ressentido e revanchista empenhado em reverter toda a ordem europeia pós-1991. Ou melhor, é um país com um único líder obcecado com o que acredita ser uma injustiça histórica que vai tentar corrigir, não importando o custo que terá para o seu próprio povo.
O heroísmo dos ucranianos que se mobilizam em torno do seu país e que lutam desesperadamente contra um inimigo muito maior inspirou pessoas em todo o mundo. O presidente Zelensky passou a ser visto como um líder modelo, corajoso sob fogo não metafórico, mas real, e uma fonte de unidade para uma nação anteriormente fraturada. A posição solitária da Ucrânia, por sua vez, provocou um notável ressurgimento do apoio internacional. Cidades em todo o mundo engalanaram-se com bandeiras ucranianas azuis e douradas e prometeram apoio material.
Contrariamente aos planos de Putin, a NATO emergiu mais forte do que nunca, com a Finlândia e a Suécia a pensarem agora em aderir. A mudança mais notável ocorreu na Alemanha, que anteriormente era o maior amigo da Rússia na Europa. Ao anunciar uma duplicação do Orçamento alemão para a defesa e a vontade de fornecer armas à Ucrânia, o chanceler Olaf Scholz inverteu décadas de política externa alemã e atirou o seu país incondicionalmente para a luta contra o imperialismo de Putin.
Embora seja difícil ver como Putin conseguirá alcançar os seus maiores objetivos de uma Rússia superior, ainda temos um longo e desanimador caminho a percorrer. Putin ainda não mobilizou toda a força militar que tem à sua disposição. Os defensores da Ucrânia estão exaustos e a ficar sem alimentos e munições. Será uma corrida entre a Rússia reabastecer as suas próprias forças e a NATO tentar reforçar a resistência ucraniana. À medida que a Rússia duplica a aposta, as cidades ucranianas sofrem bombardeamentos indiscriminados e tragicamente estão a assemelhar-se a lugares, como Grozny, na Chechénia, que sofreram bombardeamentos russos semelhantes na década de 90. Existe também o perigo de escalada dos combates para confrontos diretos entre a NATO e a Rússia, ao mesmo tempo que se apela a uma zona de “exclusão aérea”. Mas serão os ucranianos a suportar o custo da agressão de Putin e quem lutará em nome de todos nós.
As dificuldades do liberalismo não irão acabar mesmo que Putin perca. A China estará à espreita, bem como o Irão, a Venezuela, Cuba e os populistas dos países ocidentais. Mas o mundo terá aprendido qual é o valor de uma ordem mundial liberal e que não sobreviverá a menos que as pessoas lutem por ela e mostrem que se apoiam mutuamente. Os ucranianos, mais do que qualquer outro povo, mostraram o que é a verdadeira bravura e que o espírito de 1989 permanece vivo no seu canto do mundo. Para o resto de nós, tem estado adormecido e está a despertar.
Artigo retirado da Revista E, Expresso de 18 de março de 2022
(Artigo originalmente publicado no Financial Times)
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