A História de Hans - O Início do Nacionalismo, por Francis Fukuyama
- RockandRolla
- 10 de mar. de 2022
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"Consideremos a situação de um jovem camponês, Hans, que cresceu numa pequena aldeia da Saxónia. A vida de Hans na pequena aldeia está fixada: vive na mesma casa que os pais e os avós; está noivo de uma rapariga que os pais acharam aceitável; foi batizado pelo padre local; e planeia continuar a trabalhar na mesma leira de terra que o pai. Nem ocorre a Hans perguntar "quem sou eu?" dado que as pessoas à sua volta já responderam por ele à pergunta. Mas ele ouve dizer, no entanto, que estão a abrir grandes oportunidades no vale industrial do Ruhr, de modo que viajava até Dusseldorf para trabalhar numa empresa siderúrgica que lá opera.
Hans está agora a viver num dormitório com centenas de outros rapazes como ele, vindos de toda a Alemanha do Noroeste. As pessoas falam diferentes dialetos; algumas das que vai conhecendo não são sequer alemãs, mas francesas ou holandesas. Já não está debaixo do controlo dos pais e do pároco e conhece pessoas de credos diferentes da sua aldeia. Ainda mantém o compromisso de casar com a sua noiva mas é tentado por algumas das mulheres locais que conheceu e sente um revigorante sentimento de liberdade na sua vida pessoal.
Ao mesmo tempo, Hans está perturbado. De volta à aldeia, foi rodeado por amigos e parentes, que o conheciam e o apoiaram em tempos de doença ou de má colheita. Não tem esse tipo de certeza acerca dos novos amigos e conhecimentos que fez e está certo de que o seu novo empregador, uma grande companhia, cuidará dos seus interesses. É-lhe dito que alguns agutadores comunistas estão a tentar criar um sindicato da sua fábrica, mas também ouviu dizer mal deles e não confia neles. Os jornais estão cheios de histórias contraditórias sobre disputas no parlamento e não sabe em quem acreditar. Hans suspeita que todos esses partidos políticos que se querelam são egoístas e não estão interessados em representá-lo. A sua zona da Alemanha tornou-se parte de um enorme Reich do qual se pode sentir orgulhoso, mas está a rolar a toda a velocidade para um futuro incerto. Sente-se sozinho e desligado do seu meio circundante; sente saudades da sua aldeia, mas não quer voltar para lá, pois isso seria um sinal da sua derrota pessoal. Pela primeira vez na sua vida, Hans pode fazer escolhas sobre como viver a sua vida, mas pergunta a si mesmo quem realmente é e quem gostaria de ser. A questão da sua identidade, que nunca teria sido um problema lá na sua terra, torna-se agora uma questão crucial.
A história pessoal de Hans foi caracterizada pelo teórico social oitocentista Ferdinand Tonnies como a passagem da Gemeinschaft para a Gesellschaft, ou da Comunidade (aldeã) para a Sociedade (urbana). Foi experimentada por milhões de criaturas europeias durante o século XIX e está agora a acontecer em sociedades em rápida industrialização como a China e o Vietname.
A deslocação psicológica engendrada pela transição da Gemeimschaft para Gesellschaft lançou as bases de uma ideologia do nacionalismo baseada numa intensa nostalgia por um passado imaginário de uma comunidade forte em que as divisões e confusões de uma sociedade moderna pluralista não existiam.
O historiador Fritz Stern analisou um certo número desses primeiros ideólogos da identidade alemã, como o enormemente influente polemista e estudioso bíblico Paul de Lagarde. Largarde viveu na Alemanha recém-unificada de Bismarck de fins do século XIX, quando o país estava a experimentar um milagre económico de crescimento, industrialização e crescente poder económico e militar. Mas Largarde, em incontáveis artigos e panfletos (coligidos nos seus “Escritos Alemães” em 1886), não via à sua volta senão decadência cultural: o espírito alemão tinha-se transformado em egocentrismo como resultado das doutrinas liberais baseadas na racionalidade e na ciência. A velha Alemanha era uma Alemanha de fortes virtudes e de forte espírito comunitário que precisava de ser trazida de volta. Imaginou uma nova religião que fundiria o cristianismo com as "catacterísticas nacionais dos alemães", uma fé que se tornaria a base de uma nova identidade nacional. Lagarde escreveu: "Uma vez que uma nação (um povo) não tenha senão uma vontade todos os conflitos serão banidos." Sendo em certa medida um pária académico, nunca atingiria a fama que julgava merecer pelo seu trabalho de interpretação da Septuaginta; a unidade com o povo alemão era ao mesmo tempo uma solução para a sua solidão pessoal e uma fonte da dignidade que não conseguia alcançar como académico indivdual.
Lagarde, como outros nacionalistas alemães oitocentistas, viu o povo alemão como vítima de forças extremas. Lagarde tinha uma visão conspirativa da razão da decadência da cultura alemã: os judeus eram portadores da modernidade liberal, inserindo-se na vida cultural da nova Alemanha moderna, trazendo com eles ideias universalistas e de democracia e socialismo que minavam a unidade do povo alemão. Para restabelecer a grandeza alemã, os judeus tinham de ser banidos da nova ordem que ele visionava.
Intelectuais como Friedrich Nietzsche a Ernst Troeltsch ou Thomas Mann leram Lagarde com simpatia e as suas obras seriam distribuídas amplamente pelos nazis. Falava às ansiedades de um povo que fazia a transição da sociedade agrária das aldeias para a vida moderna, urbana e industrial, uma transição que para milhões de europeus que a experimentavam empurrava a questão da identidade para primeiro plano.
Era o momento em que o pessoal se tornava político. A resposta dada a um camponês perplexo, como Hans, por ideológicos como Lagarde era simplesmente: és um alemão orgulhoso, herdeiro de uma antiga cultura, ligado pela língua comum a todos os milhões de outros alemães espalhados pela europa central e oriental. O trabalhador solitário e confuso tinha agora um claro sentido de dignidade, uma dignidade que, tomava agora consciência, era desrespeitada por gente má que de alguma maneira se tinha infiltrado na sua sociedade."
[Excerto retirado da obra "Identidades" de Francis Fukuyama, 2018]
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