A Era da Felicidade Light - a religião do Eu [por Gilles Lipovetsky]
- RockandRolla
- 28 de jan. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 1 de mar. de 2021

A era da felicidade das massas celébra a individualidade livre, privilegia a comunicação e multiplica as escolhas e as opções. De facto, a cultura da felicidade não se concebe sem todo um arsenal de normas, de informações técnicas e científicas capazes de estimular um trabalho permanente de auto-controlo e de vigilância de si próprio: depois do imperativo categórico, o imperativo narcísico incessantemente glorificado pela cultura higiénica e desportiva, estética e dietética.
Manter-se em forma, lutar contra as rugas, zelar por uma alimentação saudável, bronzear-se, manter a linha, descansar, a felicidade individualista é inseparável de um extraordinário forcing no esforço de dinamização, de conservação, de gestão optimizada de si próprio.
Já não se trata, como antes, de governar idealmente as paixões individuais, mas sim de optimizar os nossos potênciais; já não se trata da aceitação resignada do tempo, mas da eterna juventude do corpo; já não se trata da sabedoria, mas do trabalho que cada um é capaz de executar.
Por um lado, a época além-dever liquida a cultura autoritária e puritana tradicional; por outro, gera novos imperativos (juventude, saúde, elegância, forma, lazer, sexo) de auto-construção individual, sem dúvida personalizados, mas que criam um estado de hiper-mobilização, de stress e de reciclagem permanente. A cultura da felicidade desculpabiliza a auto-absorção subjectiva, mas, ao mesmo tempo, desencadeia uma dinâmica de ansiedade, provocada pelas próprias normas do bem-estar e do melhor-parecer que a constituem.
Duas tendências antinómicas moldam as nossas sociedades. Uma, incita aos prazeres imediatos, quer eles sejam consumistas, sexuais ou distractivos: sobrevaloriza pornografia, droga, sexo selvagem, bulimia de objectos e de programas mediáticos, explosão do crédito e endividamento doméstico. Aqui, o hedonismo exprime e intensifica o culto individualista do presente, desqualifica o valor do trabalho, contribui para dessocializar, desestruturar e marginalizar as minorias éticas das grandes metrópoles e os rejeitados dos subúrbios. Em contrapartida, a outra privilegia a gestão ‘racional’ do tempo e do corpo, o profissionalismo em todas as coisas, a obsessão pela excelência e pela qualidade, pela saúde, pela higiene.
Vemos instalar-se um hedonismo dual, desordenado e desresponsabilizante para as novas minorias de massa, prudente e integrador para as maiorias silenciosas. Dizer das nossas sociedades que elas são hedonistasnão significa que elas sejam entregues sem reservas à espiral desenfreada dos prazeres.
Sociedade hedonista significa que os prazeres passaram a ser, por natureza, legítimos, objectos de informações, de estimulações e de diversificações sistemáticas. O prazer deixou de ser banido, passou a ser massivamente valorizado e normalizado.
“Consumir com moderação”: a nossa aritmética utilitarista adquiriu o rosto de uma gestão dos prazeres imediatos, homeopáticos e desmultiplicados. O hedonismo pós-moderno já não é, nem agressivo, nem diletante, é “gerido”, funcionalizado, prudentemente light. A cultura da felicidade “leve” induz uma ansiedade crónica de massa, mas faz desaparecer a culpabilidade moral.
Nas sociedades democráticas, as sombrias profecias de Freud e Nietzsche não se realizaram, o sentido do erro moral não tende, de forma nenhuma, a intensificar-se; não é a necessidade de castigo que faz mover a nossa época, é a superficialização da culpabilidade que reitera o universo efémero dos objectos e dos media: em França, cerca de 2 católicos praticantes em cada três pensam que os pecados não conduzem ao inferno.
À medida que as normas da felicidade se reforçam, a figura do zapper substitui a do pecador, a depressão, o vazio ou o stress é que nos caracterizam, não o abismo da má consciência mortificadora. A emoção suscitada pelo espectáculo das crianças de ventre deformado depressa é afastada pelo filme da noite; assistir a um concerto de solidariedade, usar um ‘badge’ anti-racista, enviar um cheque para combater a miopatia, nada disto tem grande relação com as angústias da culpabilidade e a tirania do super-ego.
A era dos média sobreexpõe a infelicidade dos homens, mas desdramatiza o sentido da falta, a velocidade da informação cria a emoção e dilui-a ao mesmo tempo.
[Excerto retirado da obra "O Crepúsculo do Dever" de Gilles Lipovetsky]
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