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M Train - Memórias de Patti Smith [Excertos]

  • Foto do escritor: RockandRolla
    RockandRolla
  • 19 de jan. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 22 de fev. de 2021


Patricia Lee Smith nasceu a 30 de Dezembro de 1946 em Chicago, Ilinois. O mundo conhece-a como Patti Smith desde 1970. Patti Smith é tudo menos convencional, ou não fosse uma lenda viva da geração beat.


Em 1967 mudou-se para Nova Iorque onde conheceu Robert Mapplethorpe quando trabalhava numa livraria. O primeiro livro de Patti Smith, Just Kids, é uma homenagem a Robert e a esses tempos de intimidade extasiante com a cidade de Nova Iorque e os génios que nela habitavam.


Em 1975 lançou aquele que seria o seu cartão de visita - o álbum Horses. Com este trabalho, Smith entrelaça a música e a poesia de uma forma tão sentida que dificilmente se consegue ficar indiferente.

Em 1976 conhece o músico Fred Sonic Smith, em Detroit. Os dois começaram uma relação à distância que culminou, dois anos depois, com a ida de Smith para Detroit e o início de uma relação de 17 anos. Fred morreu em 1994 vítima de um ataque cardíaco.


Em 1995 Patti decide voltar a Nova Iorque e à música e faz uma digressão com Bob Dylan em Dezembro desse ano. Patti Smith é hoje uma escritora, poetisa, cantora e activista política.


Em Maio de 2016 chegou às livrarias portuguesas o seu último feito à data: M Train. Como a própria nos diz, o livro é "um mapa das estrelas da minha vida".


M Train leva-nos pela memória de Patti a lugares que fizeram parte da sua história. De Nova Iorque à Guiana Francesa, ao México e à casa de Frida Kahlo ou ao túmulo de Sylvia Plath em Yorkshire e de Jean Genet, em Larache, passando por Berlim e pelo Japão, acompanhamos a autora numa viagem interior, cheia de lugares e pessoas, escrito na solidão de um café novaiorquino.


Patti partilha connosco os diferentes tempos que uma vida tem e as mais variadas influências que pode entrelaçar. Como um relógio sem ponteiros que marca todas as horas invisíveis. E se o primeiro livro de Patti foi uma homenagem a Robert, este é uma homenagem a Fred, o homem que marcou outro dos tempos da sua vida e o único com quem casou.


No entanto, não se resume a Fred. Podemos encontrar-nos com Jean Genet, Albert Camus, Frida Kahlo, Jack Kerouac, William Burroughs, Roberto Bolaño, Alfred Wegener, Neil Young, Wittgenstein, Murakami, Maria Callas e muitos outros. Patti é exímia a inspirar-nos através da sua própria inspiração.


Não consigo escolher entre Just Kids e M Train, os dois livros são complementares e, neste caso, um segue o outro, cronologicamente. Dos sonhos da inocência aos sonhos da experiência Patti Smith faz-nos gostar de (a) ler. E que mais se pode pedir a um escritor?


[Excertos]

Sento-me em frente do café sem igual do Zak. Por cima, as ventoinhas rodopiam, simulando as quatro direções de um catavento. Ventos fortes, chuva fria, ou ameaça de chuva; uma sequência indistinta de calamidades vindas do céu impregnou subtilmente a minha existência. Sem me dar conta caio numa inquietação ligeira, embora prolongada. Não é bem uma depressão, é mais um fascínio por uma melancolia que rodo na minha mão como se fosse um pequeno planeta, raiado de sombra, impossivelmente azul.


***

Quando as pesadas cortinas se abriram e a luz da manhã inundou a pequena área da sala de jantar, ocorreu-me que, sem qualquer dúvida, nós às vezes escondemos os nossos sonhos por baixo da realidade.


***

Fiquei ali sentada durante muito tempo a beber chá e a ouvir rádio. O Neil Young a cantar Ninguém sai vencedor, é a guerra do homem contra o homem. O Neil tem razão, ninguém ganha nada; ganhar é uma ilusão, essa é que é a verdade.


***

O dia estava fresco e luminoso e o ar vibrava de vida, com filamentos translúcidos como os de uma espécie aquática rara, de longos tentáculos a ondular na vertical como os que saem do corpo de uma alforreca. Seria possível materializar a energia humana desta maneira? Imagino esses filamentos a oscilar na horizontal a partir das pontas do meu blusão preto.


***

A bússola era velha e enferrujada, mas ainda funcionava, ligando a terra e as estrelas. Dizia-me o sítio onde me encontrava e para que lado era o ocidente, mas não me dizia para onde eu ia nem que valor eu tinha.


***

Fechei o caderno e sentei-me no café a pensar no tempo real. Será um tempo ininterrupto? Incluirá apenas o presente? Serão os nossos pensamentos nada mais do que comboios a passar, sem paragens, sibilando por enormes cartazes de imagens sucessivas? Captando o fragmento de uma ideia num lugar à janela, seguida logo de outra num enquadramento idêntico? Se eu escrever no presente e começar a divagar, estarei ainda no tempo real? O tempo real, pensei, não pode ser dividido em secções como números no mostrador de um relógio. Se escrever acerca do passado ao mesmo tempo que vivo no presente, estarei ainda no tempo real? Talvez não haja passado nem futuro, apenas o presente perpétuo que contém a tríade da memória.


***

Eu e o Fred não tínhamos uma relação definida com o tempo. Em 1979 vivíamos no Hotel Book Cadillac, no centro de Detroit. Vivíamos sem tempo, passando pelos dias e pelas noites sem nos preocuparmos com as horas. Podíamos ficar a pé, a falar até de manhã e depois dormir até anoitecer. Quando acordávamos íamos à procura de restaurantes que estavam abertos vinte e quatro horas ou acalmávamos um pouco e vagueávamos pela loja de mobílias Art Van que abria à meia-noite e servia café e donuts de graça. Às vezes andávamos apenas de carro, sem destino, e parávamos, antes de o Sol nascer, num hotel qualquer em sítios como Port Huron ou Saginaw e dormíamos o dia todo. (p.99)


***

O que é o nada? - perguntei impetuosamente. "É o que podes ver pelos teus olhos sem um espelho à frente", foi a resposta.


***

Sylvia Plath matou-se na cozinha do seu apartamento em Londres, no dia 11 de fevereiro de 1963. Tinha 30 anos. O seu marido, o poeta Ted Hughes, tinha-a deixado. Os filhos estavam cuidadosamente aconchegados nas suas camas. Sylvia meteu a cabeça no forno. Treme-se só de pensar na situação de uma existência capaz de chegar a um desencanto tão radical.


***

Deixei arrefecer o café e pensei nos detectives. Os parceiros dependem dos olhos uns dos outros. Um diz: conta-me o que vês. O outro tem de ser claro sem deixar nada de parte. Mas um escritor não tem parceiro. Ele tem de criar distância e pedir a si próprio: diz-me o que vês. Mas, uma vez que ele está a falar de si para si, não precisa de ser completamente claro, porque guarda no seu íntimo tudo o que parece faltar – aquilo a que falta clareza ou está particularmente articulado.


***

Jean Genet está sepultado no cemitério cristão de Larache, perto de Tânger. Genet morreu na primavera de 1986. Nos princípios de Abril, Genet tinha viajado com o seu companheiro Jack Maglia de Marrocos para Paris para ver as provas do que seria o seu último livro. Tinha-lhe sido proibida a entrada no Hotel Rubens, onde costumava ficar quando em Paris, porque um funcionário do Hotel Jack, um modesto hotel de uma estrela, perto da Place d'Italie. Enfiado num quarto não maior do que uma cela, Genet trabalhou arduamente nas suas páginas. Embora atormentado por um cancro terminal na garganta, evitava tomar analgésicos, determinado a permanecer lúcido. Depois de ter tomado barbitúricos durante toda a sua vida, abestinha-se agora de o fazer, precisamente quando mais precisava deles e motivado unicamente pelo desejo de aperfeiçoar o seu manuscrito, desprezando ao mesmo tempo todo o sofrimento físico. No dia 15 de Abril, Jean Genet morreu sozinho, caindo no chão da casa de banho do seu minúsculo quarto num hotel de passagem. O mais provável é ter tropeçado no degrau que conduzia ao cubículo. Na mesa de cabeceira jazia o seu legado, a sua última obra intacta. Nesse mesmo dia os Estados Unidos bombardearam a Líbia. Havia rumores de que Hana Kadafi, o filho adoptivo do coronel Kadafi, tinha sido morto num ataque. Quando me sentei a escrever, imaginei o órfão inocente a guiar o órfão ladrão para o paraíso.


***

As coisas que perdemos choram por nós? As ovelhas eléctricas sonham com o Roy Batty? Será que o meu casaco cheio de buracos se vai lembrar dos momentos maravilhoso que passámos juntos? Dormir em autocarros de Viena a Praga, noites na ópera, passeios junto ao mar, o túmulo de Swinburn na Ilha de Wight, as arcadas de Paris, as cavernas de Luray, os cafés de Buenos Aires. Uma experiência humana entrelaçada nos seus fios, Quantos poemas sangram das suas mangas esfarrapadas? Distraí-me dele por um momento, atraída por outro casaco mais quente e mais macio, mas de que eu não gostava muito. Porque perdemos as coisas que amamos e coisas que nos são indiferentes se agarram a nós, podendo tornar-se, depois de morrermos, símbolos do valor que tivemos?



[Excertos retirados da obra "M Train" de Patti Smith]

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