O que John Steinbeck nos ensina n'As Vinhas da Ira
- RockandRolla
- 23 de mar. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de set. de 2021

Em 1939 John Steinbeck fez um relato único, um poema em prosa, sobre alguns dos side effects da «grande depressão». Naquela altura foram os agricultores do Oklahoma. Noutra altura qualquer podemos ter de ser nós a descobrir que não há laranjas grátis na Califórnia. E o mais engraçado é que a tão famosa e cheia de charme «route 66» nasceu aqui, no êxodo dos que tinham fome.
«Os senhores chegavam às terras ou, mais frequentemente, mandavam alguém por eles. Vinham em carros fechados, e apalpavam a terra ressequida com os dedos, mas algumas vezes traziam brocas grandes, que perfuravam o solo para o analisar. Os rendeiros, à porta dos seus pátios, batidos pelo sol, observavam, inquietos, a marcha dos carros através dos campos. E, por fim, os proprietários entravam nos pátios e, sentados nos nos seus carros, falavam para fora das janelas. Os rendeiros paravam ao lado dos carros por um momento e, depois, punham-se de cócoras a esgravatar a poeira com paus.
Nas portas abertas, as mulheres olhavam para fora e, por detrás delas, as crianças – crianças de cabelo cor de milho e de olhos muito abertos, com um pé descalço por cima do outro pé descalço, remexendo os dedos. As mulheres e as crianças observavam os homens a falar com os proprietários. Mantinham-se silenciosas.
Alguns dos proprietários eram afáveis, porque detestavam o que estavam a fazer; outros mostravam-se irritados, porque lhes repugnava serem cruéis, e ainda outros eram frios, porque de há muito tinham descoberto que não se podia ser proprietário de terras sem se ser frio. Mas todos eles se sentiam apanhados numa teia mais poderosa do que eles próprios. Alguns odiavam os algarismos que os impeliam, outros tinham medo, e outros adoravam os algarismos porque lhes serviam de refúgio para não pensarem nem sentirem. Se um banco ou uma empresa financeira era o dono da terra, o seu delegado dizia: «O banco – ou a companhia – precisa, quer, insiste, exige», como se o banco ou a companhia fosse um monstro, com ideias e sentimentos, que os tivesse apanhado na rede. Estes não tomavam responsabilidades em nome dos bancos ou das companhias porque eram homens e escravos, ao passo que os bancos eram ao mesmo tempo máquinas e patrões. Alguns dos delegados sentiam-se um tanto orgulhosos de serem escravos de patrões tão frios é tão poderosos. Os proprietários ou os seus representantes sentavam-se nos carros e explicavam:
- Vocês sabem que a terra é pobre. Vocês já a revolveram bastante tempo, como Deus sabe.
Os rendeiros, acocorados no chão, acenavam com a cabeça, meditavam e desenhavam figuras no pó. Sim, eles sabiam. Deus sabia também. Se não fosse a poeira! Se, ao menos, eles pudessem adubar a terra, não seria tão mau.
Os proprietários continuavam a puxar a brasa à sua sardinha:
- Vocês sabem que a terra está cada vez mais pobre. Vocês sabem o que o algodão faz à terra: rouba-a, suga-lhe todo o sangue.
Os colonos acenavam com a cabeça, que sabiam, que Deus sabia. Se pudessem alternar as plantações, podiam tornar a insuflar sangue na terra.
Sim, mas é muito tarde. E os proprietários explicavam os atos e os pensamentos do monstro, que era mais forte que eles. Um homem pode ter terra de renda, se ela lhe dá para comer e pagar impostos: assim pode tê-la.
Sim, pode tê-la até que um dia as colheitas falham e ele tem de pedir dinheiro emprestado ao banco.
- Vocês bem veem; um banco ou uma companhia não podem viver assim, porque essas entidades não respiram ar, não comem carne. Respiram lucros; comem o juro sobre o dinheiro. Se os não obtiverem, morrem do modo por que vocês morrem: sem ar e sem carne. É uma coisa triste, mas é assim mesmo. Precisamente assim.
Os homens, agachados, erguiam os olhos para compreender. Não seria possível esperar mais algum tempo? Talvez o próximo ano seja um bom ano. Sabe Deus se haverá muito algodão no próximo ano? E, com todas as guerras, sabe Deus o preço a que o algodão chegará. Não se fazem explosivos de algodão? E uniformes? Arranjem bastante guerras e o algodão subirá até ao teto. No próximo ano, talvez. Olhavam para os proprietários com ar interrogativo.
- Não podemos estar atidos a isso. O banco – o monstro – tem de recolher sempre lucros. Não pode esperar. Senão morre. Não, os juros estão continuamente a subir. Quando o monstro para de crescer, morre. Não pode estar sempre no mesmo tamanho.
- Dedos finos começavam a tamborilar no peitoril da janela do carro e dedos calosos apertavam mais os paus que esgaravatavam nervosamente no chão. Às portas das casas batidas pelo sol, onde moravam os rendeiros, as mulheres suspiravam e mudavam os pés, de modo que o que tinha estado para baixo, estava, agora para cima com os dedos a mexer. Os cães chegavam, farejavam perto dos carros dos proprietários e mijavam sucessivamente em todos os pneumáticos. E as galinhas agachavam-se na poeira quente e sacudiam as penas para que a poeira lhes descesse até à pele. Nas pequenas pocilgas, os porcos grunhiam, pedindo qualquer coisa, remexendo os restos enlodados das lavagens.
Agachados, os homens tornavam a ferrar os olhos no chão.
- Que querem os senhores que a gente faça? Não podemos tirar partilha menor da colheita; estamos quase a morrer de fome. As crianças andam sempre esfomeadas. Não temos roupas, só farrapos. Se todos os vozinhos não estivessem na mesma, teríamos vergonha de ir ao culto.
E, por fim, os proprietários chegaram ao ponto crucial.
- O sistema de arrendamento não pode vigorar mais. Um só homem a guiar um trator pode fazer o trabalho de doze ou catorze famílias. Paguem-lhe um salário e ele toma para si toda a colheita. Temos de fazer isso. É contra a nossa vontade. Mas o monstro exige-o. Não nos podemos opor a ele.
- Mas vão matar a terra com algodão.
- Bem sabemos. Temos de cultivar algodão depressa, antes que a terra morra. Depois vendemos a terra. Há centenas de famílias no Este que querem possuir um bocado se terra.
Os rendeiros olharam para os carros, alarmados.
- E, depois, o que vai suceder? Como havemos de comer?
- Vocês têm de deixar a terra. Os arados rasgarão os vossos quintais.
E agora os homens agachados ergueram-se coléricos.
O avô havia-se apoderado da terra; tivera de matar os índios e de os expulsar. E o pai nascera ali e matara ervas ruins e cobras. Depois, viera um ano mau e ele tivera de pedir algum dinheiro emprestado.
- E nós nascemos aqui. Esses que estão ali às portas, os nossos filhos, nasceram aqui. E o pai teve de pedir dinheiro emprestado. O banco achou-se então dono da terra, e nós ficámos, mas apenas com uma pequena parte daquilo que colhíamos.
- Nós sabemos isso, tudo isso. Não somos nós, é o banco. Um banco não é um homem. E um proprietário de cinquenta mil acres também não é como um homem. É um monstro.
- Sentimos muito - disseram os proprietários. - O banco, o dono de cinquenta mil acres, nada tem a ver com isso. Vocês estão em terra que não é vossa. Talvez, para lá da fronteira, vocês consigam arranjar trabalho no outono, na colheita do algodão. Talvez consigam ser socorridos como indigentes. Porque não vão para o Oeste, para a Califórnia? Há lá muito trabalho e nunca faz frio. Ali, em qualquer parte, podem estender a mão e apanhar uma laranja. Ali há sempre uma ou outra plantação onde trabalhar. Porque não hão-de vocês ir?
E os proprietários puseram os carros em movimento e foram-se embora.
[ … ]
Os Estados ocidentais sentiam-se inquietos como os cavalos antes da trovoada. Os grandes proprietários apoquentavam-se, pressentindo a metamorfose, sem atinarem, no entanto com a sua natureza. Os grandes proprietários atacavam o que lhes ficava mais próximo: o governo de poder crescente, a unidade trabalhista cada vez mais firme; atacavam os novos impostos e os novos planos, ignorando que todas essas coisas são efeitos e não causas. As causas do escondiam-se bem no fundo e eram simples – as causas eram a fome, a barriga vazia, multiplicada milhões de vezes, fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco de tranquilidade, multiplicada milhões de vezes; músculos e cérebros que ansiavam por crescer, trabalhar, criar, multiplicada milhões de vezes. A última função clara e definida do homem – músculos que querem trabalhar, cérebros que querem criar para além da simples necessidade – isto é o homem. Porque o homem, ao contrário de qualquer coisa orgânica ou inorgânica do Universo, cresce para além do seu trabalho, galga os degraus das suas próprias ideias, emerge acima das próprias realizações. É isto que se pode dizer a respeito do homem. Quando as teorias mudam e caem por terra, quando as escolas filosóficas, quando os caminhos estreitos e obscuros das conceções nacionais, religiosas, económicas, se alargam e se desintegram, o homem arrasta-se para diante, sempre em frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado. Tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás, mas apenas meio passo, nunca o passo todo que já deu. Isto é o que se pode dizer do homem: dizer-se é saber-se. Isto verifica-se quando as bombas caem dos aviões negros sobre a praça do mercado, quando os prisioneiros são tratados como porcos imundos e os corpos esmagados se esvaziam nojentos, na poeira. Pode verificar-se deste modo. Não tivesse sido esse passo, não estivesse vivo no pensamento o desejo de avançar sempre, essas bombas jamais cairiam, e nunca nenhum pescoço teria sido cortado. Receiem-se os tempos em que as bombas não caiam enquanto existam os bombardeiros, pois que cada bomba é uma demonstração de que o espírito ainda não morreu. E receiem-se os tempos em que as greves cessem, enquanto os grandes proprietários viverem ainda, pois cada greve vencida é uma prova de que se está a dar um passo. E isto pode saber-se – receiem a hora em que o homem não queira sofrer mais e morrer por um ideal, pois esta é a qualidade base da Humanidade, é o que a distingue entre todas as coisas do Universo.»
[Excertos retirados da obra “As Vinhas da Ira” de John Steinbeck]
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