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Os Seres Humanos São Animais que Leem, por Alberto Manguel

  • Foto do escritor: RockandRolla
    RockandRolla
  • 6 de set. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 8 de set. de 2021


«Costuma-se dizer que os sacerdotes egípcios foram os primeiros livreiros do mundo, porque ofereciam nos templos às famílias enlutadas exemplares de “O Livro dos Mortos”, depois colocados com o corpo no túmulo para guiarem a alma pelo Reino das Trevas. Ainda hoje, um leitor que partilhe os seus livros desempenha idêntica função sagrada: os livros que recomendamos aos amigos, os livros que partilhamos, podem ser, para os que souberem usá-los, companheiros de jornada mágicos, guias para a nossa viagem pelo reino deste mundo e, se quisermos, pelo mundo que há-de vir. Todo o leitor sabe que o livro certo nas mãos certas é um talismã para ultrapasssar adversidades.

Estou convencido de que os seres humanos podem ser definidos enquanto espécie como animais que leem, e enquanto formos capazes de sobreviver neste planeta continuaremos a ler. Nascemos com o impulso de decifrar o mundo e encaramos tudo em redor como se uma história estivesse a ser contada para nossa edificação. Deste impulso emerge a antiga metáfora do mundo como um livro – um livro que lemos e em que também estamos escritos. E é possível que derive desta metáfora a ideia de que ler é uma atividade alquímica pois permite-nos transpor as tais supostamente insuperáveis barreiras do tempo e do espaço.

O ato de ler, de ter um livro nas mãos, enroscados numa poltrona ou tranquilamente sentados no autocarro ou num avião, na retrete ou na banheira, de barriga para baixo na relva ou deitados de costas na cama, folheando o livro para a frente e para trás, procurando uma passagem preferida sempre que nos apetecer, tão devagar ou depressa como acharmos melhor, permite que os outros continuem a viver na nossa leitura e que nós continuemos a viver nas palavras dos outros.

Só através do ato de ler, e de mais nada neste mundo, é possível esta feliz imortalidade. Contudo, para usufruírem destes momentos de prazer os leitores devem cumprir certas tarefas essenciais. Distingo seis, mas é provável que haja mais:


1

Sem leitores a literatura é muda. A primeira tarefa do leitor é salvar a memória da literatura. “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, foi publicado em 1954. Passa-se no futuro, numa época em que a função dos bombeiros não é apagar fogos mas sim queimar livros. Ainda há pessoas, no entanto, que acham que os livros são necessários, que os livros são essenciais. E para salvarem estes livros, memorizam-nos. Montag, o herói, perseguido pela polícia do Estado, descobre um grupo destes livros ambulantes na clandestinidade e junta-se a eles. “Gostarias de ler ‘A República’ de Platão um dia, Montag?”, pergunta o líder do grupo. “Claro que sim!”, responde Montag. “Eu sou ‘A República’ de Platão. Gostarias de ler Marco Aurélio? O Simmons é Marco Aurélio.” E assim Montag conhece Swift, Darwin, Schopenhauer, Confúcio e Mahatma Ghandi. Para que “um dia, um ano, estes livros possam ser escritos outra vez, as pessoas serão chamadas uma a uma, para recitarem o que sabem, de modo que os livros possam ser reimpressos, até nova Idade das Trevas, altura em que teremos de repetir o processo.


2 A segunda tarefa é fazer sentido dessa memória. A verdade de um texto reside na leitura desse texto, não nas intenções do autor – um fascista como o excelente romancista Louis-Ferdinand Céline pode escrever textos que permitem leituras antifascistas, tal como um humanista como Pablo Neruda pode escrever poemas que não passam de panfletos e portanto são anti-humanos. Em 1960, Eugène Ionesco escreveu “O Rinoceronte”, uma peça que (segundo o próprio autor) explorava a sua experiência do nazismo e em que os elementos de toda uma sociedade se transformam lentamente em rinocerontes. Só um homem, Berenger, recusa essa transforma; as suas últimas palavras, gritadas perante as hordas de rinocerontes que se aproximam são: “Não capitularei!” Pouco antes da independência da Argélia, em 1962, em plena guerra entre argelinos e franceses, um teatro de Argel encenou “O Rinoceronte”. No fim, quando o ator disse “Não capitularei!”, a plateia irrompeu em vivas – de ambos os lados. Os argelinos leram nestas palavras um incentivo para continuarem a lutar; os franceses, um encorajamento para não desistirem. Ambas as facões fizeram sentido da memória de Ionesco, e estou convencido de que as duas leituras foram legítimas.

3

Todos os escritores, sem excepção, partilham uma coisa: com as palavras, traçam paisagens que o leitor tem de identificar. Estas paisagens têm de ser reinventadas e depois exploraras pelo leitor, que avança por sua conta e risco. A reinvenção e a exploração são a terceira tarefa do leitor. Chinua Achebe fez um protesto eloquente contra “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, lendo-o como um texto racista. O ensaio de Achebe mostra uma argumentação cuidadosa, mas, curiosamente, ignora a possibilidade de uma outra leitura, mais ampla. Neste sentido, “O Coração das Trevas” parece-me uma extraordinária ‘denúncia’ do racismo, em que não há esperança para o sistema político tal como ele se apresenta. É irrelevante que Conrad pense ou não assim. Uma grande obra de arte supera sempre o seu criador. Os leitores têm de exigir a liberdade incondicional da sua própria exploração. Se nós, leitores, não tivermos todas as escolhas, não teremos escolha alguma.

4

A quarta tarefa do leitor depende da disponibilidade para se entregar. Alguns leitores podem achar que se adaptam melhor à paisagem exuberante de García Márquez ou de Marguerite Yourcenar; outros podem sentir-se mais próximos dos sóbrios quartos e cozinhas de José Rodrigues Miguéis ou de Naguib Mafouz. Uns preferirão os reinos zoológicos de Rudyard Kipling ou das fábulas de Esopo; outros inclinar-se-ão mais para as regiões sombrias de Sadegh Hedayat ou de Charles Dickens. Alguns leitores, ao que tiverem mais sorte, serão cidadãos do mundo. E todos os leitores perceberão que a característica que estes escritores partilham é serem ilusionistas, em maior ou menor medida. A quarta tarefa do leitor é ser especador do ilusionista.


5 A quinta tarefa é o entendimento: assimilar o texto com a experiência que tenhamos e as competências que possamos trazer ao ato de leitura. As palavras – os rabiscos que os escritores fizeram para dançarem na página diante do nosso olhar, criando sons na escuridão do nosso espírito – são essencialmente uma forma de alquimia. Surgindo literalmente do ar as palavras que o escritor regista permitem a cada um de nós, leitores, descobrir, captar, explorar, identificar, transformar, analisar e até habitar o mundo à nossa volta e dentro de nós. E, às vezes, quase compreendê-lo.


6

Ainda outra tarefa, a última e mais importante: sentir prazer. Sem o prazer, sem a felicidade de nos perdermos na página, ler não faz sentido. A tarefa do leitor é confiar nesse prazer e segui-lo até onde ele o levar. É difícil explicar as razões pelas quais determinado livro nos dá prazer, tal como é difícil explicar as razões por que amamos uma certa pessoa. Podemos indicar motivos, podemos dar exemplos, mas as coisas que realmente importam para nós entrelaçam-se-nos nas entranhas e no coração, como aquelas vinhas que abrem caminho nas rochas gravando nelas o seu percurso. Acho extremamente comovente que os livros sejam criaturas tão fiéis. Em tempos de incerteza, desespero, sofrimento físico ou inquietação espiritual, perseguidos pela ganância e pela idiotice do mundo, por burocratas e outros tolos, sob os céus sombrios que todas as pessoas a dada altura enfrentam em maior ou menor grau, é um milagre que estes companheiros feitos de palavras nos guiem, nos deem força e nos consolem.»




[Excertos adaptados do artigo de Alberto Manguel na Revista E do Expresso de 03-09-2021 "Um ócio livre e honesto"]




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