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Purity - Da Alemanha de Leste ao Twitter, somos todos apparatchicks [de Jonathan Franzen]

  • Foto do escritor: RockandRolla
    RockandRolla
  • 19 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 23 de fev. de 2021



Jonathan Franzen nasceu em 1959, no Illinois, e vive em Nova Iorque. Foi considerado pela Granta e pelo The New York Times como um dos melhores romancistas norte-americanos com menos de quarenta anos. Poucas obras conseguiram um reconhecimento da crítica e do público tão unânime como Correcções (2001). Em 2010 Liberdade apareceu em todas as principais listas de jornais e revistas como o livro do ano e Franzen foi capa da revista Time - uma honra que não era concedida a um autor vivo há uma década.


Acabei hoje de ler este novo livro do "grande romancista americano" e estou desiludida. A história tinha tudo para ser vencedora mas o enredo e as personagens deixam-nos como que perdidos numa trilha desconexa. É como se o autor tivesse desistido de aprimorar os pormenores, se tivesse cansado da história e tivesse editado um rascunho de uma obra-prima. Franzen não era assim, pelo menos o que eu conhecia dele não era isto. Era cuidado e metódico nos pormenores, era simplista ao ponto de uma frase no sítio certo nos fazer parar cinco minutos para pensar. E nós, leitores, sabemos o quão raro e precioso é esse momento, em que um escritor tem a capacidade para nos alhear, ao ponto de questionarmos a realidade através das suas palavras. Franzen desiludiu-me, mas vou para sempre recomendá-lo como autor de Liberdade (2010) e Correcções (2001).


Purity é uma miscelânea de actualidades que vão aparecendo de forma desconexa ao longo da narrativa. Da Alemanha de Leste de 1980 à Nova Iorque de 2002 a história é uma desconstrução daquilo que, unanimemente, o ocidente considera ser a realidade.


Purity, como o nome indica, é a parte incólume que nasce num mundo conspurcado. Andreas é um homem que teve a infelicidade de nascer numa Alemanha de Leste fechada sobre si mesma, onde o mundo se media pelas palmas das mãos. Estas duas personagens constroem assim uma dialéctica que vai preencher todo o romance, ou não estivessem elas ligadas por laços invisíveis de realidades partilhadas a que, só no fim, teremos acesso.


Deixo-vos com a que é, para mim, a melhor parte de Purity (2015):


[Excerto]

"Os apparatchicks eram outro tipo eterno. O tom dos novos apparatchicks, nas suas palestras TED, em lançamentos de produtos com o apoio de powerpoints, em depoimentos perante parlamentos e congressos, em livros de títulos utópicos, era um xarope untuoso de convicção oportunista e capitulação pessoal de que se lembrava bem do tempo da República. Não conseguia ouvi-los sem pensar na letra dos Steely Dan - So you grab a piece of something that you think is gonna last. (A rádio do setor americano tinha passado a canção vezes sem conta, para os ouvidos jovens do sector soviético.) Os privilégios disponíveis na República eram rascas, um telefone, um andar com algum ar e luz, a importantíssima autorização de viajar, mas talvez não fossem mais rascas do que ter x seguidores no Twitter, um perfil no Facebook com muitos gostos, e um ou outro anúncio de quatro minutos na NBC. O verdadeiro atrativo do apparatchick era a segurança da pertença. Cá fora, o ar cheirava a enxofre, a comida era má, a economia moribunda, o cinismo galopante, mas lá dentro a vitória sobre o inimigo de classe estava garantida. Lá dentro, o professor universitário e o engenheiro aprendiam aos pés do operário alemão. Cá fora, a classe média desaparecia mais depressa do que as calotas glaciais, xenófobos ganhavam as eleições, tribos em guerra chacinavam-se religiosamente, mas lá dentro as desconcertantes novas tecnologias tornavam obsoleta a política tradicional. Lá dentro, comunidades informais descentralizadas reescreviam as regras da criatividade e a revolução compensava quem corria riscos e percebia o poder das redes. O Novo Regime até reciclava as palavras de ordem da República, colectivo, cooperativo. O axioma de ambas era que estava a emergir uma nova espécie de humanidade. Nisto estavam de acordo os apparatchicks de todas as castas. Nunca parecia preocupá-los que as suas elites dirigentes fossem formadas pela velha espécie de humanidade brutal e gananciosa.


Lenine fora um homem que corria riscos. Trotsky também, até Estaline fazer dele o Bill Gates da União Soviética, o cripto-reacionário banido. À semelhança dos velhos politburos, o novo politburo apresenta-se como o inimigo das elites e o amigo das massas, vocacionado para dar aos consumidores aquilo que eles queriam, mas para Andreas (que, reconheça-se, nunca aprendera a desejar coisas) era como se a Internet fosse principalmente governada pelo medo: o medo da impopularidade e da reprovação, o medo de falhar, o medo do desprezo ou do esquecimento.

Havia no interior do Novo Regime uma quantidade de Snowdens em potência, funcionários com acesso aos algoritmos que o Facebook usava para converter em dinheiro a privacidade dos seus utilizadores e o Twitter usava para manipular memes que alegadamente se geravam automaticamente. Mas a verdade é que as pessoas inteligentes estavam muito mais aterrorizadas com o Novo Regime do que com aquilo que o regime havia convencido as pessoas menos inteligentes a recearem, a NSA, a CIA - era uma importação directa do guião totalitário, esta coisa e uma entidade renegar os seus próprios métodos de terror imputando-os ao inimigo e apresentando-se como a única defesa contra eles - e quase todos os Snowdens em potência mantinham a boca fechada.


Por duas vezes, porém, pessoas do interior do sistema haviam abordado Andreas - curiosamente ambos trabalhavam para a Google - oferecendo-lhe conteúdos de emails internos e software de algoritmos que revelavam claramente como a companhia armazenava dados pessoais dos utilizadores e filtrava ativamente informação que alegava refletir passivamente. Em ambos os casos, receando o que a Google podia fazer-lhe, Andreas tinha-se recusado a transferir os documentos. Para preservar a sua autoestima, tinha sido franco com os informadores: "Não posso fazer isso. Preciso de ter a Google do meu lado."


[Excerto retirado da obra "Purity" de Jonathan Franzen]

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