A Estética como Conhecimento Humano [Júlio Cortázar]
- RockandRolla
- 20 de jan. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 1 de mar. de 2021

Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? O que é o homem? O que sou eu?
Estas são as principais perguntas feitas ao longo de todos os tempos, por todos os homens.
É a partir deste questionamento inato que nós, seres humanos, nos projetamos face ao mundo.
Até hoje ninguém foi capaz de responder inteiramente a nenhuma destas questões. No entanto, não é por isso que deixamos de as formular.
Somos ‘seres-no-mundo’, seres inscritos num universo do qual não podemos fugir. Somos automaticamente entregues ao mundo desde que começamos a respirar e precisamos de aprender a viver nele.
Todos tentamos executar essa tarefa da melhor maneira, todos procuramos essa fórmula secreta, a autenticidade desmedida, que talvez ninguém tenha ainda encontrado, mas que não deixa de existir nas consciências humanas como objectivo a alcançar.
E é exactamente na procura das respostas que nos entregamos ao subjectivo e onde apreendemos o mundo na sua forma mais pura.
Mas que mundo é esse? É exactamente aquele onde diariamente damos passos, onde constantemente somos surpreendidos, onde construímos sentimentos, criamos relações, onde somos assaltados por sensações e onde por vezes caímos na mais pura angústia. Tudo isto é sentido na primeira pessoa dentro de um corpo que é atravessado pelo mundo ao mesmo tempo que o atravessa.
O Homem tentou desde sempre construir fórmulas que o ajudassem a compreender-se e a explicar-se a si próprio. E foi através da Arte que conseguiu a melhor expressão subjectiva de si mesmo.
Segundo uma certa perspectiva, a Arte é a sensação inscrita sob uma forma que o artista escolhe para evidenciar emoções e sentimentos. E este processo é um exemplo daquilo a que podemos chamar fenómeno estético. Mas nem sempre foi assim, a Arte nem sempre foi livre e a experiência estética nem sempre foi tida em conta, porque a Arte nem sempre pertenceu ao âmbito do conhecimento sensível.
Muitos séculos foram necessários para que o homem se pudesse expôr, livre de regras e de preconceitos. Na antiguidade a beleza era um a priori antes de qualquer relação sujeito-objecto. A única beleza válida era a beleza ordenada no universo, que seguia regras estritas, onde a ordem, a harmonia e a simetria eram conceitos obrigatórios a seguir na construção de qualquer obra de arte. O Homem não possuía a liberdade de expressão que hoje é concedida à Arte. No pensamento clássico o belo e a arte são algo de supra-sensível, independentes da percepção subjectiva. Só no século XVIII é que se começa a exercer o princípio da subjectividade e da relatividade, o belo e a arte passam a depender do sujeito e das transformações ocorridas dentro desse mesmo sujeito.
O século XVIII é composto por uma dualidade entre o eixo da razão e o eixo do sensível - há, em simultâneo, a emancipação de uma razão antropológica e uma emancipação dos sentidos. É nesta altura que se começa a dar relevo ao efeito emocional das obras de arte. O efeito catarse é o apelo da arte à emocionalidade dos receptores e o próprio autor da obra está contido nesse efeito. A arte torna-se então uma expressão subjectiva e a estética torna-se uma epistemologia da sensibilidade.
Cortázar, no capítulo 73 d'O Jogo do Mundo (Rayuela), constrói, sob o meu ponto de vista, uma estética literária que consegue evidenciar na plenitude esta epistemologia da sensibilidade. Ao ler Cortázar é impossível que não nos sintamos atingidos por uma força invisível que nos denuncia emocionalmente. E não será exactamente este o efeito esperado de uma obra de arte? Não será perto deste ponto que se desenha o sublime? A grandeza emocional que não cabe em si própria, que tem necessidade de explodir, e pela qual somos atingidos num abraço de sensibilidades partilhadas.
“Sim, mas quem é que nos vai curar do fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de la Huchette, que sai pelos portais carcomidos, dos corredores estreitos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e se anicha nos vãos das portas, como é que vamos fazer para nos lavarmos da sua doce queimadura que continua sempre, que se instala para durar, aliada ao tempo e à memória, às substâncias pegajosas que nos mantêm deste lado, que nos queimam docemente até nos calcinar.”
É o sublime, de mãos dadas com o grotesco, que nos provoca a sensação de profundidade emocional onde somos atacados e arrastados por uma experiência que não proveio de nós mas que se torna nossa. E é o Gosto na sua faculdade de microscópio do juízo que nos provoca diferentes disposições afectivas face à obra de arte.
“A arder assim, sem trégua, a suportar a queimadura central que avança como a maturação no fruto, ser a vibração de uma fogueira nesta sequência infinita de pedras, vaguear pelas noites da nossa vida com a obediência do sangue no circuito cego.”
Há um tempo indefinido e sem forma que atravessa a arte, e não é possível arranjar uma lógica argumentativa para definir este tempo. O contacto com o mundo que a arte nos permite é um contacto matricial, como se alguns sentidos ou gestos fossem o início de tudo, como se nesses gestos tudo estivesse em tudo, como se habitassemos a plenitude e a fractura do que somos no mesmo instante. É o acumular da vida de uma forma completamente diferente, sem perda de nenhuma das suas capacidades ou memórias.
Todos nós somos afectados por sensações que vêm do exterior, estas sensações são caóticas e desorganizadas, mas ao colocarmos estas sensações dispersas, no espaço e no tempo, tornam-se automaticamente percepções.
O nosso juízo de gosto está intimamente ligado a estas percepções, e é ao sentir-se afectado por elas que o Homem forma o seu juízo reflexivo. A partir do momento em que aceitamos reflectir encontramos em nós mesmos um sentimento íntimo que torna impossível demonstrar a validade dos nossos juízos. É aqui que nasce a subjectividade, que nos permite a nossa própria reinvenção, a nossa forma de conhecimento a partir da experiência já vivida que se faz presente e guarda em si a intensidade desse gesto, o instante em que marco a minha mão na matéria do mundo.
“É assim que Paris nos destrói devagar, deliciosamente, triturando-nos por entre flores velhas e toalhas de papel manchadas de vinho, com o seu fogo sem cor que corre ao anoitecer, saindo dos portais carcomidos.”
É desta forma que se instaura entre o sujeito e o objecto uma relação estética, acompanhada por um sentimento de prazer, de reconhecimento, uma medida partilhada, uma tonificação de sentimentos co-sentidos.
Alexandre Baumgarten funda o conceito de estética em 1750 e atribui-lhe a seguinte descrição: “a presença de certos objectos melhor dotados, bem organizados nas suas formas, capazes de se dirigirem simultaneamente a todas as faculdades internas do homem, aos sentidos e ao espírito”. A partir daqui começou a existir uma actividade humana que tinha como finalidade a produção deste tipo de ‘objectos’ específicos da experiência estética.
Hoje, somos afectados por uma profunda mutação da cultura, na qual os padrões clássicos se tornam quase irreconhecíveis. Assistimos a uma busca propositada de categorias aparentemente extra-estéticas como o horrível e o grotesco, que põem em causa o acerto de que a arte se oriente para a produção da beleza, do prazer e do bom gosto. O sentimento do belo vai-se alargando a outras categorias afectivas, o efeito estético evolui para um pluralismo, a sensibilidade e o gosto, enquanto sentimentos estéticos passam a referir-se a uma série de disposições afectivas como o feio, o grotesco, o sublime... A Arte passa a ser entendida como um fenómeno de comunicação e a dimensão passional passa a ser a protagonista.
A estética passa a ser encarada como a faculdade de sentir, a ciência da sensibilidade. A estética do sublime passa a ser encarada como uma estética da força, que visa o êxtase, que visa transportar o leitor para uma sensação do absolutamente grande, o que nos esmaga. A estética como uma poética da percepção.
“Arde em nós um fogo inventado, uma tura incandescente, um artifício da espécie, uma cidade que é o Grande Parafuso, a agulha horrível com o seu olho nocturno por onde corre o fio do Sena, máquina de torturas, agonia numa jaula repleta de andorinhas furiosas. Ardemos na nossa obra, fabulosa honra mortal, alto desafio de Fénix.”
A estética é um tipo de conhecimento que bate à porta de todas as qualidades sensíveis dos humanos e que está relacionado com a capacidade inteligível do homem. O insondável abismo do que somos e o insondável abismo que o mundo é.
“Ninguém nos curará do fogo surdo, o fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de Hachette. Incuráveis, absolutamente incuráveis, escolhemos o Grande Parafuso como tura, inclinamo-nos sobre ele, entramos nele, voltamos a inventá-lo a cada dia que passa, a cada mancha de vinho na toalha, a cada beijo do mofo nas madrugadas da Cour de Rohan, inventamos o nosso incêndio, ardemos de dentro para fora, talvez seja essa a escolha, talvez as palavras envolvam essa escolha como guardanapos envolvem o pão e o sabor permaneça no interior, a farinha que se estica, o sim sem o não, o não sem o sim, o dia sem Manes, sem Ormuz ou Arimán, de uma vez por todas e em paz e chega.”
A nossa vida assemelha-se a uma viagem. Quando viajamos procuramos conhecer. Conhecer o rosto que é indefinido, de nós mesmos. Há uma diluição da nossa identidade no corpo do mundo e é a paixão pelo conhecimento que desencadeia a viagem, é a curiosidade atormentada, um conhecimento que nos escapa continuamente, um saber amargo que se alcança, o horror de enfrentarmos a nossa imagem em diluição. Por mais que percorramos esta viagem vamos sempre notar a presença de uma ausência, a busca atormentada da nossa própria imagem, a reconfiguração de si, criar, ser, pensar, como viver na impossibilidade de definir definitivamente a configuração do sentido que indicia o humano?
Uma hemorragia de sentidos, pensados desde o interior, que se nos revelam sob a forma de obras de arte, onde nos revemos.
[Excertos retirados da obra "Rayuela - O Jogo do Mundo" de Júlio Cortázar]
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